De São Paulo
Estimados milhares de leitores, que satisfação estar de novo com vocês, aqui nesse ambiente desenfumaçado dos últimos dias.
Mas, como a realidade é algo que muda o tempo inteiro, enquanto bares e restaurantes se tornaram ambientes bem mais amigáveis aos seres humanos respiradores de oxigênio, o ambiente eletrônico da televisão anda tão esquentado que derreteu até o bombril da antena aqui de casa. Globo e Record se inspiraram no glorioso Senado Nacional e partiram pro chute na canela. Bom para todos nós. Quando os grandes e enormes brigam, parte do muito que eles sabem e a gente não, vem à tona.
Pra começo de conversa, devemos lembrar que essas duas redes de comunicações têm em comum apenas isso: serem duas redes de comunicação. No resto, Globo e Record são animais muito diferentes, mesmo que dotados de dentes grandes e mesmas intenções de predadores.
A Globo é como uma novela da Globo, que nos conta historinhas para boi dormir. Nenhuma novela da Globo quer mudar o mundo ou nos tornar pessoas melhores. Ela nos convida a comprar xampu, iogurte e automóvel, mais nada. Assim é a Globo.
Ela também é a expoente de uma era de grandes veículos que faziam e desfaziam o mundo em que vivíamos. A lógica de uma Globo é a de qualquer grande empresa ligada aos interesses do grande capital, e naturalmente as intenções desse povo nunca foram ajudar o mundo a ser um lugar mais legal, igualitário e modelado pela fraternidade socialista. A Globo é consequência do golpe militar, e não é exatamente surpreendente perceber que nasceu pra ser uma aliada natural e defensora de uma certa ordem. Mas ela também faz televisão de excelente qualidade, coisas do Guel Arraes, do Jorge Furtado, entre outras. Ela faz quando quer, só não quer mais porque parece que não precisa.
A Record é uma grande igreja do bispo Macedo com fachada de rede de comunicações. E a igreja do bispo Macedo não é moleza. Os tais templos dele têm cara de cartório e alma de cobrador de impostos. Entrou ali, pimba, você está achado por eles e perdido pra sempre. Eu lembro de ter escutado o bispo Macedo uma vez apenas, em um táxi de um convertido e salvo pela igreja do bispo.
Não sei se vocês já escutaram, mas é assustador o tal bispo. Assustador pelo tom da voz, de vampiro de filme do Polansky, assustador pela total falta de escrúpulos na hora de dizer a que veio e o que espera da gente. A igreja do bispo Macedo é que nem novela da Globo, só que sem a novela - débito ou crédito, estimado crente?
Uma rede de comunicações de uma igreja dessas faz o que, afinal das contas? Mesmo que ela faça jornalismo com bons profissionais, o que eles tiveram que fazer ontem e anteontem diante das câmeras foi dar a mensagem do chefe. E, diferentemente da Globo, o chefe da Record é o bispo!
Eu tenho saudades do SBT e da Tele Sena. Pelo menos ali ficava na cara que o que o Silvio Santos tinha era uma rede de televisão inteira devotada a vender Tele Sena. Assim, com as coisas claras e simplinhas, tudo, mas tudo mesmo fica mais fácil.
A Globo queria a nossa mente e o nosso corpo, hoje se satisfaz com uma parte razoável do nosso bolso, e ainda faz o Criança Esperança pra mostrar que é legal. A Globo é como a igreja Católica, que faz o que faz, mas com um jeito pra lá de respeitável.
A Record quer o que? Ela quer enfiar o exu caveira na gente e cobrar pra tirar, em suaves prestações mensais, pelos próximos 30 anos.
A Globo é conseqüência e representante de um modelo de sociedade que parece que se esgota. A Record é parte de um império tão sibilino quanto raso, se espalha por todo canto, mas, espero, não faz mais do que manchar o carpete.
A diferença, e talvez seja essa a causa da briga das duas, é que a Globo é uma empresa. Se ela precisa de dinheiro, tem que ir ali adiante, trabalhar, vender, faturar, pagar seus impostos, gerar lucro e então poder tocar no din din. A Record, não. Escasseou o caixa, aluga-se o Maracanã, faz-se uma celebração para Jesus Cristinho na versão do bispo, junta-se duzentos mil coitados, passa-se o saco, todo mundo contribui ou vai ver só, leva-se os sacos de dinheiro pros templos, pronto. Cash flow pra ninguém botar defeito, fora todo mundo com alguma decência no coração.
Talvez seja essa a causa da briga, como foi a causa da queda do Collor. Collor caiu, como talvez vocês saibam, porque uma vez no poder, com a tolerância do andar hiper de cima, começou a acumular dinheiro com uma voracidade alagoense e até então desconhecida. O andar de cima tremeu, Collor caiu.
Talvez o sistema esteja informando ao bispo que melhor ele moderar a taxa de acumulação de capital, ou o céu cai em cima dele. Talvez o bispo já se sinta poderoso o bastante para peitar a banca.
Artigo de opinião originalmente publicado na Página do Terra Magazine.
Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe".
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