Tenho que correr. É muito importante que chegar ao meu
destino a tempo. Mas... onde quero chegar? E quem determinou o limite de tempo?
Essas perguntas não parecem ter a menor importância nesse momento.
Quanto mais corro, mais longo parece o caminho. Percebo
então na beira da estrada por onde corro (não lembro em que ponto a superfície tornou-se
uma estrada) há uma grande jaula, semelhante a de um circo. Dentro dela, tem um
garoto, muito pequeno e franzino, encolhido em um canto. Há algo a mais dentro
dessa jaula. Da escuridão se ergue uma criatura. Ela possui uma longa cauda que
balança preguiçosamente. As sombras diminuem, a criatura se revela ser um tigre
de proporções não naturais que se vira para mim. Nesse momento, percebo que sou
também o garoto dentro da jaula. O Tigre abre a boca e espero escutar um
rugido, mas o que escuto é um o canto de um galo.
———
Acordo. É o despertador do celular, aquele maldito som do
galo, que já esta toca há algum tempo. Preciso lembrar de trocar o som deste
despertador. Mas hoje, por algum motivo, ele me conforta. Pensarei nisso mais
tarde. Agora tenho que ir para o trabalho.
Atividades como levantar, ir ao banheiro, me despir, urinar,
tomar banho e me vestir faço ainda em um estado sonolento. Preparo o café da
manhã para mim e meu irmão, que deve estar acordando a esta hora. Durante as
próximas duas semanas seremos só ele e eu na casa. Nossos pais viajaram para a
nossa cidade natal, Tururu.
—Vitor, não esquece de ir comprar o garrafão d’água. – Grito para o meu irmão, próximo a porta do
quarto.
Ele responde apenas com um resmungo. Mas já conheço bastante
as variações dos resmungos dele para saber que ele entendeu a mensagem.
Hora de sair. Após uma pequena caminhada me deparo tanto com
o que mais amo como com o que mais odeio desde que vim morar em Fortaleza: O
mar e o calor. Primeiro, a visão do mar. A Barra do Ceará não é exatamente um
ponto turístico requisitado, mas mal sabem as pessoas o que estão perdendo. A
visão deste mar azul que vai de encontro ao rio e a maré cheia que deixa os
barcos dos pescadores prontos para seu dia de trabalho. Minha mente não resiste
em imaginar até onde eles poderiam navegar. Em seguida lembro-me do outro
aspecto que tanto me marca nesta cidade.
Fica impossível ignorar o calor do o sol atingindo meu rosto
a medida faz com que já comecem a brotar as primeiras gotas de suor pelas
costas. Ainda tenho uma longa caminhada pela frente e sei que esse sol vai ser
um incansável companheiro por todo o trajeto. O problema não é que Fortaleza
seja muito castigada pelo sol. Inclusive sei que o brilho do mar existe devido
a ele.
O que me incomoda mesmo é a falta de sombra. Em todo o
caminho que vou percorrer, há apenas cerca de três ou quatro árvores que vão
dar aquela sombra tão desejada. Não quero parecer estranho, mas tenho uma lista
com motivos pelos quais ter mais árvores na cidade melhorariam a vida das
pessoas. O item 14 da lista diz o seguinte:
Se tivéssemos mais
árvores nas ruas, conseqüentemente mais sombras, nos sentiríamos mais a vontade
para parar e cumprimentar as pessoas e até conversar, já que não teríamos que
fugir do olhar inclemente do sol.
Nessa lista também faço referência a qualidade de calçadas
(mais sombra, mais pessoas caminhando, mais gente querendo manter a boa
qualidade do passeio, etc) e das razões de ter mais praças na cidade. Mas como
eu disse, não quero parece estranho.
Devaneios a parte, chego ao trabalho e então aquela gota de
suor que havia brotado em minhas costas já mostrou que não estava sozinha e a
camisa que visto já tem uma tonalidade bem diferente.
O dia no trabalho não me traz grandes emoções, infelizmente.
A não ser em um pequeno momento. É quando esqueço tudo mais que antes me
incomodava. Durante este curto período (serão minutos? Ou não passam de
segundos?) a garota que trabalha no outro andar vai passar frente a minha
janela. Só o que me vem à mente é o som do mar e o rosto dela. É como se os
olhos castanhos dela e o azul do mar fossem variações de um mesmo tema. Seus
cabelos me lembram linhas na areia. E ela sorri para mim. Mas novamente não nos
falamos.
O momento acaba e passa rápido. Demasiado rápido.
———
São quinze horas e agora vou trilhar meu caminho de volta. Alguns
metros apenas e o telefone toca.
—Oi, Vitor. Tudo bem? – Digo ao atender
—Cara, ta tudo certo. Quando vier para casa traz algo pra
jantar, aqui em casa não tem nada pra comer. – É a voz do Vitor que responde.
—Mas no caminho que to fazendo não tem mercearia nenhuma. Compra
algo no mercantil .
—To saindo pra aula no Cuca. Começa hoje, lembra?
—Ah, verdade. Karatê né? Vai lá, do meu jeito aqui.
—Cara, é Kung Fu. Para de confundir, por favor.
Nota mental. A interpretação do resmungo do Vitor pela manhã
estava correta. Coisas de irmão. Faz uns dias que ouvi o pessoal do trabalho
falar que estavam indo almoçar em uma padaria aqui perto. Só terei que desviar
o meu caminho em uns dois quarteirões, se a memória não me falha. Lá poderei
achar algo bom para jantar.
Na verdade, foram três quarteirões para achar a padaria. Mas
a surpresa maior foi ver que a rua onde havia chegado era vastamente
arborizada! Isso me trouxe uma alegria tão grande. E ao que parece eu não era o
único, pois várias pessoas se sentavam nas calçadas para conversar ou ler um
livro enquanto apreciavam o som das folhas balançando ao vento. Vou em direção
a padaria, com o passo lento, para aproveitar melhor aquele pedaço de um
paraíso verde.
A inscrição na porta diz Padaria Baobá. Peço dois pedaços de
lasanha para viagem. Uma de frango pra mim, uma de carne para o Vitor. O senhor
que me atende fala que vai demorar uns minutos para o pedido ficar pronto. Com
um sorriso no rosto ele fala que, se eu preferir, posso esperar do lado de
fora. Ele me chama quando tiver pronto. Aceito prontamente a oferta. Sento-me
em baixo de uma árvore frondosa, com galhos amplos e em diversas direções.
Relaxo no banco, e fecho os olhos por um instante. Quero apenas escutar o som
que me cerca. Pessoas conversam com a voz tranqüila, as crianças riem e mesmo
os sons dos carros, que eventualmente passam pela rua, parecem sem a pressa
usual.
Escuto som de passos bem próximo, em seguida alguém
pigarreia e vejo que é o mesmo senhor que me atendeu na padaria. Agora ele traz
uma embalagem na mão. São os dois pedaços de lasanha.
—Então jovem, gostou do ambiente? – Disse o senhor com um
sorriso no rosto.
—Bastante! Admito que não conhecia essa rua, mas me
surpreendi muito, aqui é tão agradável. –Falei enquanto me espreguiçava no
banco.
—Há alguns anos eu me mudei para esta rua e ela tinha
algumas belas árvores, —Dizia o pacato senhor enquanto sentava ao meu lado, no
banco —, mas eu tinha a sensação que ela poderia ficar ainda melhor. Plantei
algumas, cuidei delas, reguei e as vi crescer.
—Isso deve ter demorado bastante pra acontecer. Para ficar
assim.
—Levou o tempo que deveria levar. Mas se não houvesse
começado, iria demorar bem mais, não concorda?
—De fato. Mas vejo que não é só no seu estabelecimento que
está sob a sombra das árvores. O senhor incentivou os vizinhos a plantarem
árvores também?
—Não foi preciso incentivar. Ao menos não da forma como você
talvez esteja pensando. Comecei a plantar porque vi algo bom nisso. Quando outras
pessoas passaram a compartilhar da mesma sensação que você tem agora, elas
passaram a fazer funcionar também. As vezes é através do exemplo que ensinamos
melhor.
—Isso é inspirador. – Disse, enquanto idéias começavam a
brotar em minha cabeça.
— Fico feliz. Adoro ver o nascer de boas idéias, — Então ele
levantou-se – Agora, preciso voltar. Há clientes me esperando. Espero que você
goste da lasanha, e sinta-se a vontade para volta a esta padaria.
———
Naquela noite, Vitor e eu falamos sobre esse encontro. Não
demorou muito, voltamos os dois lá e conversávamos com o senhor da padaria. Aos
poucos nossa rua foi ganhando tons de verde também. Junto com isso passou a
ganhar mais vida, as pessoas utilizam mais o espaço delas. Me surpreendi ao
perceber que a rua parecia mais segura agora, e sem dúvida, mais acolhedora.
Mas tenho que admitir que talvez mais tenha me marcado, foi que eu e a garota
dos olhos castanhos, nos falamos pela primeira vez (primeira de tantas outras)
em baixo de uma dessas árvores.
Hoje quando saio de casa para ir ao trabalho, o mar me
encanta bem mais. Se bem que ele não habita mais sozinho meu coração.